domingo, 28 de fevereiro de 2010

A busca ao tesouro

Lembrei-me de um mais um caso que nos remete a persistência humana, esta tal resiliência que é inerente a condição humana, e que na verdade nos impulsiona a seguir em frente mesmo quando o mundo parece estar contra... Vou contar-lhes hoje o caso de um amigo angolano, Kasuli, jovem forte e com muita garra. Técnico com boa formação nascido em Luanda e que foi conosco trabalhar nas minas de diamantes do antigo projecto Luzamba, na Lunda Norte em Angola. Kasuli tinha, para além de seu conhecimento profissional, um grande tino para negócios, e aos poucos foi se tornando um comerciante de diamantes digamos assim meio ilegal, já que naquela época isto podia dar em cadeia. Pois nosso amigo fez um bom dinheiro em pouco tempo, comprando as pedras dos camanguistas locais (garimpeiros) e revendendo para os compradores das grandes corporações, que na época, anterior as leis internacionais de tráfico de diamantes, dominavam tanto a compra dos governos quanto nas mãos dos atravessadores locais. Corria os ano de 91/92, em uma época de aparente paz em Angola, com acordos assinados pelos representantes do governo e da guerrilha, tudo parecia ir muito bem até que nas eleições presidenciais a Unita perdeu e voltou as armas, e o país passou por mais uma guerra sangrenta em todas as provincias, principalmente as produtoras de diamantes. Nosso projeto foi invadido pela guerrilha, e muitos angolanos fugiram as pressas, muitos morreram. Foi aí que começou a jornada de nosso herói. Com receio de perder o dinheiro de uma recente grande venda de pedras que fizera, Kasuli enterrou seu tesouro e um local bem sinalizado, perto de um grande rio da região. Teve o cuidado de fazer um mapa, de guardar em sua mente o local, pensando em um breve e seguro retorno. Mas para manter sua vida, teve que fugir para cada vez mais longe até voltar para Luanda, sua cidade e um dos lugares mais seguros do país. O que era para demorar algumas semanas durou meses, e nada da guerra acabar. Kasuli se alista de novo nas tropas do governo, com a firme intenção de voltar ao sítio onde se encontrava seu precioso tesouro, mas a Unita estava muito bem fortificada em seu controle pelas minas de diamantes. Luzamba produziu aproximadamente 6 bilhões de dólares em diamantes no período em que a guerrilha esteve com seu controle. Os diamantes de sangue. Grandes corporações compravam indiscriminadamente a produção, seja ela de qual fonte viesse. Com o dinheiro a Unita se armou, e empreendeu 5 anos de guerra que matou milhares de pessoas e mutilou outra tantas. Angola chegou a ter 20 milhões de minas terrestres em seu solo, que seguem até hoje matando ou aleijando pessoas.
Pequenas pedras, sem nenhuma utilidade prática, a não ser pela extrema beleza. Mulheres e homens, que ao comprar uma jóia nas ruas de Paris ou Nova Yorque, estavam fomentando a morte de milhares de civis, crianças, jovens e velhos, nos campos e nas cidades, vitimadas pela fome do poder.
Kasuli, no intento de chegar ao seu tesouro, sofre por vários percalços, até que em uma missão de reconhecimento seu helicóptero é abatido e cai. Dois sobrevivem, entre eles Kasuli, que mesmo ferido embrenha-se na mata e foge. Já não podia continuar nas tropas, pois ficou com uma lesão nas pernas que o impediam de andar normalmente. Teve que aguardar mais uma vez a guerra acabar, 5 anos depois.
Revi meu amigo em Luanda, em 98. Foi aí que ele me contou sua trajetória, e seu final triste: ao retornar ao local onde se encontrava o tesouro descobriu que, a ação dos anos, das chuvas e das traças tinham evaporado sua fortuna. Sua expressão já não era a mesma de anos atrás. Seu rosto e seu corpo agora revelavam um tristeza e uma perda que os anos fizeram questão de tomar pra sí. Seu maior tesouro, a juventude, a força de um espírito guerreiro já não estavam mais com ele. Sua busca foi em vão, seu tesouro, tal como a maioria de nossos bens terrenos viraram pó. Resta-nos a advertência da experiência de Kasuli, resta-nos saber realmente qual será o melhor tesouro a buscar nesta nossa pequena jornada de vida.

Um abraço

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Mam' é Ixi!

"Esta é Minha Terra materna,
Terra de lembranças queridas,
e de dores quase eternas,
Terra que me foi escolhida.
Terra de secos torrões,
de dura capina,
E que a tão esperada chuva transforma,
em barro moldado nas mãos caprichosas.

Esta é minha terra;
de cheiros e de gostos tão fortes, tão belos,
de cantos e danças, sorrisos alegres,
em faces que teimam em mostrar-nos o oposto.

O oposto do cio da terra que geme,
por seus filhos que sofrem os desgostos da vida,
que nem é tida como vida aos olhos de outras gentes.
Terra que abre a madre gentil, fecunda e quente
e que nos recebe de volta tão de repente,
que sequer notam que o que somos é gente."

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Histórias da Resiliência Angolana

Não sou um expert neste mundo virtual, somente sei o básico. Tampouco sou um especialista nas relações humanas, nem acostumado a escrever casos ou estórias. Hoje sei que gosto de ouvir histórias, causos, de preferência ditos por gente do povo, onde a falta da polidês intelectual deixa-nos mais a vontade para entender. A estes casos pretendo dar forma agora neste tímido blog, dando falas a gente comum, seres humanos sofridos que tiveram a triste sina de nascer em solo africano, de serem pobres, negros, terem vivido em uma época de guerras, e de muita dor. Minha experiência com este povo não é muita, mas teve um começo prematuro pra mim, que aos 24 anos vim trabalhar nas terras angolanas, em plenos idos de 1985, em plena guerra civil angolana. Hoje enxergo que minha sina, minha passagem por esta vida me remete a este lugar, a este país, este povo, pois volta e meia minha vida profissional me traz aqui de volta. Foram várias etapas: 85 a 90, 91 a 92, 89 a 2000, e agora (2009...). Todas elas marcadas por sorrisos alegres e lágrimas, por despedidas e reencontros, por guerra e paz. Para falar destes momentos é que me dispus a escrever, não com a intenção de ser lido, mas puramente pra extrair da alma aquilo que tanto me marcou, e marca: a dor, as mazelas e as alegrias de ser africano, pobre, sobrevivente, resiliente.

Passo a contar, desde já com diversos interlocutores, pessoas normais, do povo, com histórias marcantes e profundas, que enquanto eu cá estiver irei postar, dolorosamente as vezes e prazerosamente noutras.

Maria, a sobrevivente.

Maria Lwomba, este é seu nome. Mulher dos seus 40 e poucos anos, forte em espírito e em seu físico. Maria é vendedora de rua. Vende brinquedos e alguns itens de utilidade doméstica, trabalhando por 10 a 14 horas por dia, em uma rua movimentada de Luanda. Tem 2 filhos, o que é bem pouco para as mulheres angolanas. Não tem esposo, talvês nem sequer tenha tido, mas é bonito dizer que tem ou teve um. A conheci quando tive que comprar uma boneca para presentear uma menina de 2 anos, vizinha de onde moro, linda, por nome Providênca, que virá a ser outra história. Maria é do Bié, provincia ao sul do país, e veio a Luanda aos 4 anos, fugida da guerra. Em sua Buala (senzala) viu a Unita chegar, e os homens maus tomarem para sí os meninos pequeninos, para se transformarem em soldados precocemente. Foi lá que perdeu toda a família, primeiro sua mãe, que depois de servir aos homens sexualmente foi decapitada em sua frente. Maria lembra-se de não poder chorar, proibida pelo pai. Seu irmão mais velho, acusado de ser do MPLA teve que cavar sua própria vala, e após entrar nela e ter a terra a cobrir-lhe até o pescoço, receber uma salva de tiros no corpo. Os ferimentos o mataram após algumas horas, mas todos da buala tiveram que presenciar a morte de um delator, que na verdade era um pobre camponês que nem sabia a diferença entre um lado e outro.
Todos forma aos poucos morrendo, assasinados, por fome, por doenças. A vida quiz que a pequena Maria sobrevivesse, e fosse cuidada em sua jornada longa até as mãos amorosas de sua salvadora.

Bem, continuo depois.

Abraços