sábado, 13 de março de 2010

A nova fé

Nestes anos que tenho acompanhado a trajetória de Angola, uma das maiores surpresas que tive foi poder ver o renascimento da nova fé cristã no país. Depois de um período conturbado de comunismo-leninismo, onde o exercício da fé não era muito bem vindo, e com a guerra espalhando seu terror e morte, ver agora esta onda de templos e demonstrações de fé é muito gratificante. Os aspectos desta nova fé podem ser sentidos claramente nas pessoas, visto em todos os bairros, musseques, nas cidades e no interior. São várias igrejas, com templos sempre abarrotados de gente. Os representantes da nova fé pentescostal, com seus templos grandes e cheios de gente importante e outros simples, os cristãos tradicionais, os cultos locais, como os Tocoístas e Kimbandistas, e a própria igreja católica. Uma profusão de gente com bíblias nas mãos, aos domingos, nos dias de semana, gente que parece que andava sedenta de palavras que tragam um pouco de esperança e união a um povo que esteve até pouco tempo tão dividido, e que agora podem se abraçar, cantar, e principalmente receber ensinamentos sobre uma forma diferente de vida, com maior responsabilidade no dia a dia, na vida familiar, no trabalho, enfim. Esta forma tão humana de se relacionar com os outros e com Deus, que esteve represada por muito tempo e que agora se encontra livre como um rio fluente. É certo que existem aqueles que aproveitam ao máximo esta chance de obter dinheiro fácil, assim como no Brasil muitas igrejas novas surgem de um dia para o outro, pregando o acesso fácil a salvação através do dízimo e ofertas. Mas, como o joio deve crescer com o trigo, resta-nos que o senhor da colheita faça a escolha na hora apropriada. Mas disto tudo podemos tomar uma lição: nos é impossível frear esta relação do homem com o sagrado. Esta forma tão intima e necessária de identidade com um Pai, com um criador, que estando impossibilitada de existir mesmo assim não pode ser represada, ela flui naturalmente, de um lugar mais intimo do homem, onde outro não pode chegar, e segue, firme no seu caminho em direção da Fé, este sentimento inexplicável para alguns, experiência pessoal e tão íntima que marca profundamente quando chega, a ponto de mudar radicalmente vidas. Fé, esperança, solidariedade, respeito, dedicação e acolhimento. Este é o momento deste povo, momento de reencontro com o sagrado. Muitos estão neste momento, outros estão maravilhados com o poder e com o acesso a riquezas, e como tal se esquecem dos demais que são a grande massa, ainda com fome, ainda com frio, sem roupas e sem casa. Mas com esperança, e fé em um paizinho que eles conhecem tão bem, em suas constantes conversas com ele, pedindo pão, casa, saúde, esperança. A estes encaminho uma oração neste momento, Pai, não os abandone.

Abraços

sexta-feira, 12 de março de 2010

A barbearia, o velório e a festa

Próximo onde fico hospedado em Luanda existe uma barbearia. É em uma esquina movimentada no bairro do maculusso, onde grandes vitrines de vidro deixam tudo o que está lá dentro a mostra. É um lugar movimentado, sempre cheio de clientes atrás de um novo corte de cabelo, um novo modelo de barba, enfim. Nunca tinha percebido como são várias as opções de cortes de cabelo e barba para o público afro masculino. Nas paredes existem várias fotos de modelos, assim como livros dispostos nas mesas, que permitem um imenso leque das mais variadas opções em moda. Meu corte é sempre o mesmo, máquina 1. Meu barbeiro, um jovem chamado Jonas sempre me pergunta se não quero variar um pouco, talvez um estilo mais arrojado no desenho da barba, ou então um novo modelo para o cabelo que me resta, algo assim mais gira, entende?...Nunca aceito, por razões óbvias de seriedade com meu estilo caucasiano de meia idade.

Nesta semana estranhamente o salão ficou fechado por dois dias. Como está sempre iluminado internamente a noite, fiquei alí observado por alguns momentos sem entender o que se passara. Cabelos cortados no chão, máquinas dispostas por todo lado, shampoo, panos, toalhas. Tudo disposto como se tivessem saído as pressas e deixado o salão as moscas... Foi quando um rapaz que dizendo ser segurança me reconheceu como cliente e prontamente me disse:

- O pessoal todo foi pro velório, chefe
- velório? pergunto eu, de quem? algum dos funcionários?
falei isto e instintivamente pensei em Jonas, pois afinal morre-se muito facilmente nesta cidade, vítima de doenças várias, como o paludismo, cólera, e outras mazelas tão comuns...
- não chefe, me responde o rapaz. Morreu o tio do Pedro, tio mais velho, motivo de doença mesmo. Morreu em casa dele, a família tava a fazer o óbito e todos trabalhadores do salão foi pra festa em Viana.

Me lembrei de como são os velórios nas culturas tradicionais angolanas. Eu mesmo já tinha ido em alguns. Amigos, familiares e convidados em geral se reunem na casa do falecido, e entre cantoria, comidas e bebidas celebram o passamento do infeliz. A depender da condição financeira da família e o grau de respeito do falecido na sociedade as festas podem durar dias. As pessoas largam seus afazeres, trabalho, escola, porque neste momento o que mais importa é celebrar o passamento do dito cujo. Existe o choro das carpideiras de sempre, como em nossos velórios no Brasil, mas por alguns instantes as pessoas se voltam para as comidas, as bebidas e dançam. Dançam muito, musicas típicas, alegres e tristes.

É uma forma muito antiga de lidar com a morte, esta presença tão constante nas vidas das famílias africanas. As origens desconheço, mas são muito antigas. Reconheço no entanto que no fundo a morte representa um descanso maior do que fora a vida, tão dura em seus mais diversos aspectos. Os poucos elementos de felicidade representados nesta vida africana estão bem representados no velório tradicional: a alegria de rever os conhecidos e parentes em conversas que celebram os feitos do morto, o prazer representado pela comida, tudo muito bem feito com o trabalho árduo das mãos caprichosas das mulheres, a alegria da dança, que representa tão bem o amor, fala de esperança, fala de sentimentos...Este símbolos estão aí, nestes dias de festa, talvez querendo dizer ao falecido que mesmo neste momento de dor ele pôde proporcionar mais um momento de alegria ao vivos, desta vez com a sua morte.

Abraços e até a próxima.

terça-feira, 2 de março de 2010

A língua, os ancestrais, as estórias

Neste momento existe uma grande discussão em Angola e boa parte da África sobre o valor das línguas ancestrais. É bonito ver que o interesse por manter ligado este fio condutor das culturas persiste a massificação da informação. Todos os modernos recursos tecnológicos e necessidades do dia a dia nos impulsionam cada vez mais a uma língua universal, uma língua que não nos pertence, onde impera uma imagem de modernidade. O fato de se entender esta língua se impõe de forma tão avassaladora, que vemos nossos índios na amazônia, os povos distantes de uma áfrica perdida terem que falar esta nova e moderna língua, em detrimento de nosso tupi-guaraní, do kibundo, umbundo, fiote, tchokue dentre outras línguas de nossos pais e avós ancestrais, com toda sua riqueza simbólica, com toda a carga sentimental que estas línguas tão simples carregam. Esquecemos nossos contos ancestrais, e nos fartamos de Sheakspeare. Somos forçados a esta antropofagia, a temos que engulir estas palavras que não conseguem nos contextualizar. Parece que a obra do grande irmão, este estereótipo que nos persegue, esta cultura comercialmente vencedora nos obriga a digerir cada dia um pouco mais dela mesma. Nos vestimos tal qual, nos alimentamos tal qual, gostamos das mesmas músicas e, agora somos forçados a ouvir e falar tal qual o grande irmão, que a tudo vê e perscuta, e nos pune com nossa ignorância. Outro dia ouvi duas senhoras de rua em Luanda, duas kinguilas (operadoras de câmbio, por assim dizer)que falavam que a outra mana não entendeu quando o gringo pediu informações sobre quanto estava a cotação do dólar neste dia: Mana, é só fala assim: DE MÓNI IS NINEFIVE, viu?.

E assim vai. Aqui como no Brasil as palavras e termos em inglês vão se transformando em uma língua mais palatável, com a adequação de diveras palavras como por exemplo o termo TEKAWÊ, hoje já inserido no angolanês, e que significa TAKE AWAY, que representa quando queremos levar a comida do restaurante pra casa. Incrivel, não? Mais uma forma de sobrevivermos, quem sabe. Mas ao morrer a nossa língua mãe morrem as estórias. A carga poética das palavras que entendemos, que estão presentes nas estórias que nossos pais e avós contavam, e que trazem de volta as emoções tão necessárias ao homem. Sou a favor deste movimento. Voltemos as nossas línguas maternas, ao jeito de falar tão nosso. Que nossos filhos possam aprender outras línguas, mas que preservemos a nossa, como instrumento de cura, de retorno, e de paz.